Governança, clima e riscos: por que a transição exige uma nova postura dos líderes empresariais
Com uma trajetória dedicada à boa governança corporativa no Brasil, Valeria Café, diretora geral do IBGC, é uma das vozes mais ativas no debate sobre o papel dos conselhos de administração na transição climática. Integrante do Conselho Consultivo do Climate Finance Hub Brasil, Valeria traz uma visão estratégica sobre como os riscos e oportunidades relacionados ao clima devem ser incorporados na governança das empresas.
Linda Murasawa, líder de Engajamento com Setor Financeiro do CFH Brasil, especialista em liderança em sustentabilidade pela University of Oxford, conduziu a entrevista trazendo reflexões sobre o impacto das novas regulações, como os padrões do IFRS S1 e S2, a importância da governança climática nos conselhos e o papel de iniciativas como o Chapter Zero Brasil.
Valeria também traz sua experiência de quase uma década no IBGC e conta como o tema da sustentabilidade foi ganhando espaço nas estruturas de decisão das organizações.
Com um olhar prático e direto, a dupla aborda os desafios atuais — incluindo o greenwashing, os riscos legais e a necessidade de liderança responsável — e reforça o papel do Climate Finance Hub como um espaço essencial de integração entre dados, métricas e setores.
Linda Murasawa (LM): Valeria, primeiro queria te agradecer pela sua disponibilidade e também pela sua participação no nosso conselho. A sua vivência e experiência estão nos agregando muito. Pra gente, é um prazer poder conversar um pouco mais e explorar o seu conhecimento.
Valeria Café (VC): Quero agradecer por estar neste conselho. Temos pessoas com experiências muito diferentes, de setores diversos. Cada um traz uma informação nova e juntos aprendemos muito. O que acho muito bacana no Climate Finance Hub é justamente essa oportunidade de integrar diversas métricas, frameworks, para entregar um único resultado para os setores e para as organizações. Isso faz uma diferença brutal. Então, muito obrigada. Está sendo uma experiência maravilhosa.
LM: Que bom, Valeria! Aqui, do nosso lado, a gente tem mesmo essa vontade de ouvir diferentes visões – tanto da economia real quanto do setor financeiro. E um ponto que a gente queria muito ouvir de você é sobre a governança corporativa, que é o seu tema, com toda a sua bagagem de anos nessa área. O tema da governança ainda é relativamente recente no Brasil. Sustentabilidade e mudanças climáticas também. Em que momento, na sua visão, as duas coisas começaram a convergir? Quando a governança corporativa começou a olhar mais para sustentabilidade e clima?
VC: Olha, primeiro acho que vale lembrar: o IBGC trouxe o conceito de governança corporativa para o Brasil há exatos 30 anos. Na época, as pessoas nem sabiam o que era governança ou o que isso significava. Eu estou no IBGC há nove anos. E, quando vim pra cá, ainda era comum ter que explicar que governança é um sistema composto por regras, estruturas e processos para que a organização funcione de forma estruturada, visando sua longevidade e também a do ecossistema que depende dela.
O que a gente percebeu foi uma evolução gradual. Ao longo desses últimos 30 anos, todos nós, de alguma forma, trabalhamos com sustentabilidade.
A sigla ESG, por exemplo, que virou um grande tema no pós-pandemia, surgiu lá em 2006, vindo do setor financeiro, com um recado claro: precisamos de metas e métricas para quantificar o que significa sustentabilidade, até mesmo para possibilitar precificar corretamente os riscos e impactos no mercado.
Sobre a sua pergunta: quando foi que tudo isso se juntou? Eu diria que a pandemia trouxe esse novo olhar. As empresas e lideranças começaram a olhar o ser humano, o futuro e o meio ambiente de forma diferente e houve um resgate daquele conceito de ESG de 2006. Foi nesse momento que as organizações passaram a incluir, de fato, questões de pessoas, meio ambiente, uso da terra, clima e energia dentro da estrutura de governança e da estratégia da empresa.
LM: E falando em estratégia, você percebe que as empresas estão entendendo o que de fato é a transição climática? Como está essa compreensão, tanto nos conselhos quanto na governança das empresas?
VC: Recentemente participamos de um evento sobre a COP30, discutindo justamente sustentabilidade nas estratégias organizacionais. Isso começou com o mercado financeiro, passou pelo governo e agora atinge todos os setores. Quando trouxemos a regulação do IFRS S1 e S2 para o Brasil, passamos a olhar sustentabilidade e clima como risco real – algo que precisa ser analisado, quantificado e com um plano de mitigação, especialmente para as empresas listadas. Isso gerou uma evolução em cadeia. Não tem como voltar atrás. Por quê? Porque os fornecedores serão impactados, o ecossistema dessas empresas será impactado, então, todo mundo vai ter que olhar risco de uma nova forma. E, quando você olha risco, você também passa a enxergar oportunidade.
LM: Isso é perfeito. Porque o risco muitas vezes paralisa as pessoas. Mas, quando se enxerga a oportunidade, o avanço acontece. E na governança, a gente vê muito isso: gestão de risco. Mas e a gestão de oportunidades? Pensando nisso, qual é a importância das empresas terem conselhos com governança climática para estimular avanços?
VC: Muito boa a sua pergunta! Em 2020, o Fórum Econômico Mundial convidou o IBGC para liderar no Brasil a iniciativa de Governança Climática. Hoje, esse movimento está em mais de 70 países. Ele traz oito princípios que orientam os conselhos a entender o que é governança climática, a discutir o tema em suas reuniões, trazer a materialidade, a gestão de riscos, a quantificação de tudo isso, e claro, incorporar tudo isso na estratégia. O importante é que haja uma estrutura organizacional com metas, métricas e, por que não, bônus atrelados. Além disso, há a troca de boas práticas entre setores e dentro do próprio ecossistema. A governança climática cria as condições para os setores trabalharem juntos e o Brasil atingir suas metas climáticas, corresponder ao Acordo de Paris e, claro, alcançar melhores resultados globais.
Agora, é claro que temos opositores. Temos guerras e retrocessos. Mas, ao mesmo tempo, vemos regulações, instituições e empresas que seguem levando a agenda adiante. É nessa positividade que temos que focar.
LM: E você acha que há alguma lacuna regulatória no Brasil quando o tema é governança corporativa e climática? Precisamos de mais comando e controle? Ou as empresas deveriam se autorregular?
VC: Olha, eu adoraria dizer que as empresas deveriam se autorregular, mas, na prática, vejo que regulação faz bem. Por exemplo, o IFRS S1 e S2 estão acelerando o processo. Fazem as empresas andarem mais rápido.
Acho que precisamos, inclusive, de um movimento mais ativo das empresas que acreditam nessa agenda. Um grupo de trabalho reunindo organizações como o Climate Finance Hub, o IBGC e outras, para identificar que tipo de regulação já existe e como podemos melhorar. Vou dar um exemplo: hoje mesmo conversamos sobre o processo de produção de etanol para entender os impactos e onde melhorar. Então, olhar a cadeia como um todo é fundamental para identificar melhorias nas regulações. Sempre vai existir espaço para aperfeiçoar, no Brasil e no mundo.
LM: E o IBGC? Como tem apoiado as empresas a avançarem nas suas ambições climáticas? Conhecemos o Chapter Zero e outros movimentos. Pode contar mais sobre as iniciativas?
VC: Temos várias iniciativas. Uma delas é o Chapter Zero Brasil, com um grupo de voluntários incríveis, trabalhando aqui e no mundo para ampliar esse debate nas empresas. Temos também a Comissão de Sustentabilidade, que desenvolve conteúdos, publicações e grupos de trabalho.
Se você buscar no Google por “Portal do Conhecimento IBGC”, vai encontrar todas as publicações sobre sustentabilidade e clima dos últimos 30 anos – principalmente da última década. Qualquer empresa, de qualquer porte, pode acessar, baixar e começar a jornada. Em 2022, inclusive, lançamos uma publicação específica sobre como implementar o ESG.
O IBGC é uma associação com 3.500 membros, todos trabalhando pela boa governança no Brasil. Nosso propósito é simples: “Uma governança corporativa melhor para uma sociedade melhor.”
Estamos presentes em 13 capitais brasileiras, com voluntários que discutem clima e sustentabilidade. Temos também uma comunidade chamada Comunidade de Sustentabilidade e Clima, com experiências práticas. No ano passado, por exemplo, fomos para a Amazônia. Este ano, visitamos a Votorantim, um espaço incrível. Essas vivências ajudam a gente a sair da bolha, do escritório, e a refletir sobre o ser humano, a natureza, nosso papel no mundo e até sobre o básico: o oxigênio que respiramos, a água que bebemos. Às vezes até esquecemos que somos humanos, né?
LM: E a governança também tem um papel muito forte no mercado de capitais, né?
VC: Com certeza! Quando olhamos para bolsa, todas as normativas de governança estão ali.
LM: Então explica para o público em geral: o que é o Novo Mercado? O que significa uma empresa estar nele?
VC: O Novo Mercado tem 25 anos. Foi criado para valorizar o Brasil perante o mundo, atrair investidores que olhem para o longo prazo, que acreditem nas empresas nacionais.
Ele veio com o objetivo de atrair investimento sério, não apenas capital especulativo. E está em evolução. Assim como a gente faz reformas em casa, o Novo Mercado também passa por reformas ao longo do tempo. Agora mesmo está em processo de atualização.
Essa reforma traz um recado claro: “Olha, mundo, não temos fraude. Somos éticos, íntegros, transparentes. Temos equidade, sustentabilidade e responsabilização.”
Isso tudo reforça que para investimentos a longo prazo no Brasil, as empresas do Novo Mercado oferecem esse compromisso.
LM: E quando falamos de padrões, conselhos, riscos materiais, sejam eles ambientais, sociais ou climáticos, vem também a questão do dever fiduciário. Como você vê isso?
VC: Adorei você trazer o tema do dever fiduciário. Aqui no IBGC, é o que mais falamos! No final das contas, os líderes organizacionais tomam decisões com base no próprio CPF.
Hoje, no Brasil, a lei deixa claro: é o indivíduo quem responde. Se um líder identifica um risco que pode afetar negativamente pessoas, uma comunidade, o meio ambiente, é essa pessoa que será responsabilizada. Seja agora, ou no futuro.
As decisões que tomamos hoje serão questionadas daqui a dez anos. Por isso, conselheiros, CEOs, CFOs… Todos precisam olhar o impacto futuro das suas decisões.
E quando falamos de clima, já existem organizações no mundo todo, com grandes times de advogados, abrindo ações contra empresas, inclusive no Brasil e na África.
Por isso, ao decidir abrir uma fábrica, desmatar uma área ou desenvolver um novo projeto, é preciso entender os riscos e a materialidade dessa decisão. Isso é fundamental para a longevidade da empresa, da carreira do líder e até da sua família.
LM: Nesse sentido, qual é o papel do Conselho na mitigação desses riscos?
VC: O Conselho é essencial. Ele é o grande apoiador e questionador da gestão. Faz parte da linha de defesa.
O Conselho chega pra perguntar: “Você tem certeza dessa decisão? Considerou esses aspectos? Avaliou todos os cenários?”
Esse enfrentamento saudável gera melhores consensos, soluções mais criativas e resultados melhores. Esse é o papel do Conselho.
LM: Pra fechar, Valeria, com toda a sua experiência e por estar com a gente no nosso Conselho, como você enxerga o papel do Climate Finance Hub no movimento de transição climática?
VC: O Climate Finance Hub é fundamental. Ele consegue integrar todos esses indicadores que existem no mundo, trazê-los para os setores e apoiar as empresas na melhoria da governança climática.
A minha recomendação? Mostrar às empresas e aos setores o quanto o CFH pode trazer dados essenciais para que elas entendam onde estão, onde podem chegar, e, juntas, encontrem soluções de adaptação e mitigação.
Porque, no final das contas, a chuva vai vir, o calor vai vir, as queimadas vão acontecer e as pessoas serão afetadas. Qual é o papel de cada empresa nesse cenário? Pode ser de um agente transformador, que melhora a qualidade de vida das pessoas, de seus investidores de todo o ecossistema.